quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

A FLORESTA DE CEDRO - CAPITULO 1


Capitulo 1

BRASIL
RECIFE
20 de fevereiro de 1712
Fazenda São Bartolomeu


O sol da tarde estava cada vez mais quente, faltavam ainda algumas horas para o sol se pôr, e amainar o calor que naquela hora estava forte. A plantação de milho tomava uma grande parte da fazenda, o verde se misturava com os pequenos pendões que começavam a surgir por entre os pés do milharal. Aqui e ali podia se ver pequenos clarões. Apesar de que a maior parte das terras da fazenda era de plantação de cana de açúcar. Mas um terço de terra que fazia divisa com a floresta nativa era de plantação de milho.
Trinta escravos estavam divididos em pequenos grupos, cada um com uma enxada capinava o mato. Não se ouvia nenhuma palavra deles, cada um, envolto em seus pensamentos e com saudade de suas terras no outro lado do continente. A maioria dos homens estava sem camisa. O sol brilhava em suas espáduas negras e nuas, ao sol causticante. Não muito distante, um homem com um chapéu de abas largas tomava água em uma botija. De suas costas pendia uma espingarda. Ele era o Feitor. O poderoso que tomava conta de todos os escravos da fazenda. Ele colocou a botija de volta em seu cavalo.
Quando se virou, um pequeno rapaz que não passava de 15 anos estava parado com uma enxada apoiada em seus braços. Estava cansado. Começara bem antes do nascer do sol, e a fome lhe apertava o estomago.
-- O que você quer?-- Perguntou rispidamente, quando o viu perto dele.
-- Eu estou com sede meu sinhô. Dê-me um pouco de água, por favor.
-- Dane-se! Suma da minha frente! – E dizendo isso lhe deu um chute nas costas. – Volte a trabalhar seu miserável vagabundo. Você acha que a comida é de graça?
-- Estou com sede. Com mui... Ta se... De – Falou gaguejando.
-- Desgraçado! Você é teimoso mesmo ou é surdo? -- Ele pegou um chicote brandiu no ar. O chicote deu um estalo e acertou-o nas costas. No mesmo instante, dois vergões apareceram em suas costas nuas. O rapaz trincou os dentes e dobrou-se de dor, deixando a enxada cair de lado.
-- Aiiiii! – Gritou de dor.
-- Vou lhe dar outra coça, se não sair daqui logo! – Disse, apontando com o cabo do chicote de couro cru.
-- A minha água acabou... -- Insistiu o escravo.
-- Eu já lhe disse pra desaparecer da minha frente!
Ameaçou o Feitor, pronto a lhe dar outra chicotada.
-- Perdoe patrãozinho... Não me bata mais. Eu... Estou com sede.
Não terminou de falar. Só escutou o estalar do chicote em seu peito,  jogando-o para trás.
-- Cala a sua boca seu porco! Vamos ver quem é que manda aqui, seu cachorro teimoso.
Os outros escravos que estavam capinando pararam para ver o rapaz ser castigado pelo feitor.
-- E vocês! – Disse olhando para os outros escravos que estavam parados. -- Pararam por quê? Querem ir para o tronco também? – Severino! – Gritou alto. – Quando um homem gordo e mal encarado chegou perto dele. O feitor ordenou: Fique no meu lugar. E depois leve a negrada pra senzala.
-- Tá bem. – Falou Severino estufando o peito, com ar de autoridade. – Vamos trabalhar seus vagabundos! Agora a coisa é comigo, – falou arrogante.
Severino se sentia importante. Quando de vez ou outra, ficava com a incumbência de tomar conta dos escravos no eito.
Todos voltaram ao trabalho, alguns ainda olhavam de soslaio. Gostavam demais do Azekel. Jovem forte, dócil e calmo.
O Feitor pegou uma corda, enlaçou as duas mãos do escravo e o puxou com violência para perto do seu cavalo, e obedeceu sem reclamar. O medo e a dor tomavam conta dele agora. – Vou lhe colocar no pelourinho e arrancar a sua pele no chicote. Assim você vai aprender a me obedecer. – Olhou para o rapaz com a roupa rasgada e molhada de sangue, e disse entre dentes: -- Negros imundos!
Em seguida, atou a outra ponta da corda no estribo da cela e depois de montar saiu em pequeno galope. O escravo tentava acompanhar o trote do cavalo com dificuldade. De vez em quando tropeçava aqui e ali em alguma touceira de mato no caminho. Lágrimas escorriam de seu rosto. Mais nada importava agora, o importante era tentar acompanhar o feitor e viver... Se possível.
Azekel em alguns momentos era arrastado. Estava cansado, seus cortes sangravam, escorrendo pelo seu peito nu. Ele estava com medo. Medo de morrer, e medo dos açoites que com certeza teria. Seria castigado por tão pouco, mas isso era natural no engenho. Como uma ovelha muda ele seguia tropeçando, fazendo o possível para não cair. Com toda certeza o Feitor não iria esperar levantar-se, ele seria arrastado até o pátio.
Olhou para o horizonte e viu o milharal em pendões. Milharal que ele e os outros escravos ajudaram a plantar, de sol a sol. E agora ele era arrastado para a morte. Morte? Não queria pensar nisso. Seu pensamento voltou-se para sua mãe, sempre ela lhe aconselhava nunca responder a seus senhores, seus donos. Mas ele sabia que não fizera nada disso. “Com certeza ela vai sofrer junto comigo”. Pensou.
“Mãe. Me perdoe! Me perdoe!” Pensou.
O cavalo seguia em trotes na estrada empoeirada. Azekel olhou o feitor sentado na sela, nem olhava para trás, para saber em que condições estava. O Feitor detestava os negros.  Para ele morto ou vivo não importava. Só tinha o cuidado para não matá-lo longe da fazenda. O Sinhô não queria ter prejuízo com a morte de um escravo. Mas, sabia que escravos não passavam de peças de venda ou troca. Vivo tinha valor, morto seria jogado em uma vala e pronto, ou enterrado nos cemitério dos negros.
O seu senhor era proprietário de 60 escravos na fazenda. Mas já teve vezes de possuir até 150, na época de safra. A fazenda por ser grande tinha três feitores e um feitor-mor que era o encarregado geral.
Azekel era jovem e forte apesar da pouca idade. Viera junto com a sua mãe em um navio negreiro da África, há muito tempo atrás. Fora a sua mãe que chamara a atenção do seu Sinhô. Ela era alta, pele negra e brilhante, seus braços fortes e musculosos e dentes perfeitos. Todos esses atributos fizeram o seu valor subir mais do que o normal por uma escrava. Mas o seu Sinhô não se importou com o preço. A queria na sua fazenda. O seu filho iria compensar o preço alto e lhe traria lucros futuros. Para troca ou venda. Mas a má administração fez a fazenda falir. E teve que vender toda propriedade para saldar as dívidas. Depois, seu senhor voltou para Portugal... Ele...

Na casa grande, o Coronel Almeida Gonçalves Almeria de Alcântara tomava um licor de pitanga, depois de um almoço com seus amigos vizinhos. Vieram combinar as novas divisas de terra, empréstimos de escravos. E sobre o navio com novas “peças”, que estava pra chegar ao porto de Olinda.
-- Amigos. Cada dia que passa, mais me dou conta, de que a melhor coisa que fiz em minha fazenda, foi plantar cana de açúcar e milho. – Ele disse, dando uma baforada num charuto. -- Essas duas culturas me ajudaram muito. Desde a época em que o meu pai estava vivo eu lhe dei essa ideia. – O coronel Almeida levantou-se e foi até a janela. -- O meu pai, vocês se recordam... Ele era conservador ao extremo. Não aceitava mudanças. Se uma coisa estava dando certo, ele persistia, mesmo que viesse a dar com os burros n’água. Estamos passando por um tempo em que devemos renovar sempre.
-- Eu concordo com você Almeida – Disse coronel Afonso arqueando as sobrancelhas e olhando para os outros amigos.
-- Você pode até estar certo, Almeida. Mas eu procurei fazer só plantação de cana... Por enquanto, a mão de obra está saindo muito cara para todos nós. Porém acredito que, daqui a uns dois anos, o preço vai cair. Então será mais lucrativo. – Comentou o Coronel Aguiar de Souza Abrantes com as pernas cruzadas e calça de linho importado da França. Ele era o mais velho do grupo.
-- Sabe amigos, futuramente farei isso na próxima safra... Pensei muito sobre esse assunto. O milho pode ser vendido e até ajudar a alimentar a negrada boçal. Completou o Coronel Assis de Aleimar, ajeitando-se melhor na cadeira a sua gordura que saia pelas suas calças e o cinto fazendo um esforço terrível para segurar toda massa do seu corpo. – Tem muitas fazendas no Rio de Janeiro que estão plantando café e algodão.
-- Bem lembrado Assis. O que vocês acham de plantação de algodão? – Perguntou Coronel Afonso Ribeiro, acendendo o seu charuto. E depois dando uma baforada para o alto de fumaça.
Todos se olharam, e o primeiro a falar foi o Coronel Almeida, o mais novo deles.
-- Acho que a temperatura daqui de Pernambuco não ajuda. É muito quente. No sul o clima é mais propício. Além do mais, a terra ajuda também.
-- Concordo, -- disse Coronel Aguiar. -- O mais difícil meus amigos são os escravos.  Cada dia que passa, eles estão nos dando mais trabalho de insubordinação. E com essa onda de quilombos espalhados por aí... Não tem uma fazenda que não esteja reclamando de fugas.
-- Acho que são apenas boatos. Não devemos nos preocupar com isso. – Disse coronel Almeida.
-- Também acho Almeida. Com relação à insubordinação, na semana passada, eu tive que degolar uns três, pra dar respeito. -- Disse o Coronel Afonso. -- E aqui em seu engenho Almeida? Muitas revoltas?
-- Aqui em minha fazenda isso de revolta não existe. Só uns poucos cabeças duras... mas nada que dificulte. É só colocá-los no tronco. Aplicar algumas chibatadas e umas dez chicotadas e tudo está resolvido. E se souber fazer, os outros ficam com medo e vão lhe obedecer... Amigos! Negros não têm que falar nada, ou obedece ou morre. São ralés, e ralés devem ser tratadas como são. – Falou o coronel Almeida alisando seu vasto bigode.
Os outros senhores de engenho souberam por outros fazendeiros, que os escravos do engenho do coronel Almeida tinham algumas regalias. E ficaram chateados quando souberam disso. O motivo de estarem naquele almoço, era para confirmarem o que ouviram. Ou se eram mais boatos.
Foi quando ouviram uma algazarra no pátio, em frente ao casarão.
-- Que algazarra é essa Almeida? – perguntou Aguiar, ficando de pé.
Os outros se levantaram, arrastando as cadeiras.
-- Não sei... Vamos ver. – Falou levantando-se e dirigindo-se à porta. – Venham comigo.
Todos os seguiram de perto.
O barulho era grande, por causa das mulheres chorando e os cães latindo em volta do escravo que era agora arrastado pelo feitor. Quando chegou perto do tronco do pelourinho, ele parou o cavalo, desceu devagar, e viu quando o seu sinhô chegou à varanda, junto com seus amigos.
Azekel estava caído ainda com as mãos amarradas. Todo sujo e enlameado.
O feitor foi até a entrada da varanda e tirou o chapéu da cabeça em sinal de respeito, para dar satisfação ao seu sinhô.
-- O que aconteceu Tonho? (O seu nome era Antônio).
-- Aquele miserável me desobedeceu na frente de todos os outros. Ele se recusou a ir trabalhar. Se eu permitir isso os outros farão o mesmo.
Coronel Almeida pensou um pouco e alisou o seu bigode. Olhou o feitor e disse:
-- Está certo. Quem é? – Perguntou olhando no tronco um escravo caído de costas.
Os amigos do Coronel estavam ao lado, vendo a cena com curiosidade.
-- O Azekel coronel. – O feitor respondeu prontamente.
-- O Azekel? Tem certeza disso?
-- Sim sinhô.
O coronel teve um pequeno sobressalto. Conhecia e muito bem o escravo, tinha certa afeição por ele, assim como por sua mãe.
-- O Azekel? Eu tinha uns planos pra ele. Desgraçado! Coloque-o no pelourinho agora! E já sabe o que fazer. Faça dele um exemplo, – falou contrariado.
-- Uso o chicote?
-- Só o açoite.
-- Quantas chibatadas?
-- Dez.
-- Está bem. Sinhô. – concordou o feitor balançando a cabeça.
-- Espere, Tonho! Melhor 15 chibatadas!
Disse isso sem nenhuma emoção. Até com um pouco de amargura. Gostava do rapaz. Mas não podia admitir insubordinação. Se seus amigos não estivessem ali... Até poderia relevar, mas não agora.
-- Está certo meu sinhô. Assim será feito.
O Feitor virou-se em direção ao escravo caído, com o peito em carne viva. Estava sorrindo. Ganhara mais um ponto com o patrão. Iria caprichar no castigo.

Na cozinha do casarão, uma mulher estava com uma panela nas mãos, terminando de enxaguar.
-- Faizah! Faizah! – entrou uma negra quase sem fôlego gritando em plenos pulmões.
A Faizah deixou a panela de lado e foi ter com a amiga Lindiwe.
-- Fala logo mulher. O que foi?
-- Calma. Calma... O Anekel... Pegaram o Azekel!
O coração da Faizah bateu agora descompassado. Ela tirou o avental jogando em cima da mesa.
-- O Azekel? Como o meu Azekel?! Não acredito.
-- Sim. Ele mesmo.
As outras cativas chegaram mais perto.
-- O que aconteceu com ele? Fala logo mulher. – Faizah balançou a amiga.
-- Ele está no... pelourinho. – E a escrava começou a chorar.
-- Não acredito! Não acredito nisso! Não o meu Azekel! Deus... Ajude-o. Queira Deus que isso não seja verdade! – Exclamou Faizah com o coração aos pulos, inconformada.
Ela deu a volta no casarão pelos fundos, e viu uma roda de escravos que foram obrigados a assistirem o castigo.
No centro do pátio, estava um tronco de pedra com argolas... e nele Anekel preso, e manietado pelos pés e mãos. Na frente, o Feitor estava com uma chibata de coro de boi curtido. As costas do negro estavam um lanho por causa dele ter sido arrastado. Já era a nona chibatada. O sinhô mandou ele lhe aplicar quinze chibatadas. Quando Faizah viu o filho naquele estado correu até ele, e uma chibatada pegou em suas costas.
-- Perdão feitor! Perdão! – gritou chorando. – Não faça isso. É o meu filho!
O feitor lhe deu um chute na barriga. Mesmo ela sendo forte, caiu a alguns metros.
-- Fora, sua vagabunda! Ou você também irá pro tronco. – E antes que ela pudesse levantar-se tomou uma chibatada nas pernas. Faizah fez uma careta de dor. Os outros escravos só assistiam, não podiam fazer nada, porque poderiam ser até mortos se interviessem.
Ela se arrastou e o escravo que estava mais perto a ajudou a levantar-se. Faizah entre lágrimas e dor, viu o seu sinhô na varanda com seus amigos. Num arremeto de coragem, correu até eles cambaleando.  Quando chegou à escada ela implorou de cabeça baixa. Tinha quase certeza de que o seu sinhô lhe ajudaria. Já conversaram muitas vezes, e parecia que ele lhe tinha algum respeito.
-- Meu sinhô... Ajude o meu filho, por favor. – Implorou humildemente.
O Coronel Almeida Alcântara, não queria ficar em descaso com seus amigos. Estavam lhe observando como o coronel Almeida iria solucionar esse problema. E poderiam ter outro conceito contra ele, e seus métodos de tratamento com os seus escravos. O coronel Almeida, teria que tomar uma atitude, mesmo contra a sua vontade. Não seria fácil. Ele tinha grande consideração por Faizah. Ela e seu filho eram os únicos no meio de tantos escravos que sabiam ler.
-- Sua negra suja. O seu filho desobedeceu a uma ordem, e você vem implorar a mim? – Olhou o feitor ao longe e gritou. -- Feitor!  – Sua voz saiu entrecortada.
Faizah não acreditava no que estava ouvindo.
-- Pois não, Coronel.
-- Coloque essa miserável também no tronco como exemplo. E lhe dê cinco chibatadas. Depois a solte na senzala. O outro escravo, – continuou. -- Quero que o deixe amarrado a noite toda.  Sem comida e nada de água.
-- Sim sinhô.
Faizah não disse nada para não piorar ainda mais. Ela colocou as mãos no rosto pra conter as lágrimas. Olhou para o coronel e seus olhos se cruzaram por alguns segundos.
O Feitor a pegou pelos cabelos e saiu arrastando-a até o pelourinho. Amarrou com a outra ponta da corda e puxou a sua blusa de pano de saco, rasgando na parte de cima, mostrando suas costas, e lhe aplicou cinco chibatadas, deixando-as com vergões profundos.
Faizah como era forte, aguentou o castigo trincando os dentes. Os outros escravos foram obrigados a assistirem toda tortura. Era para ser um exemplo.
-- Levem esse lixo daqui! Agora! -- Gritou o Feitor-mor estalando o chicote no ar.
Três escravos saíram correndo de onde estavam, e se prontificaram a cumprir a ordem, antes que ele escolhesse mais um para espancar.  Pegaram-na em nos braços e outro nas pernas e a levaram pra senzala.
Depois que terminou a tortura, o Feitor-mor estava cansado. Enrolou a chibata e o chicote e colocou no cavalo que estava sendo segurado por um escravo serviçal.
-- Depois eu volto seu imundo! E vou acabar com a sua raça. Seus cães imundos!
Subiu no cavalo e se dirigiu à casa dos empregados que eram livres.  Enquanto que Azekel estava desmaiado com as chibatadas, somadas à sede. Seu corpo pendia com os punhos amarrados numa corda no pelourinho. Não escutou nada, saía sangue de um de seus ouvidos.
Os amigos do coronel Almeida, voltaram para dentro da casa grande, para terminarem os negócios de compra e venda de escravos. E sobre o escoamento do açúcar produzido.
-- É assim mesmo que se faz Almeida. Se fosse eu, já mataria os dois pra que eles me respeitassem muito mais.
Comentou o Coronel Assis, soltando um palavrão. Ele odiava os escravos. Dizia que um escravo bom era, quando dava lucro com sua venda, ou então estivesse morto.
-- Eu perderia muito dinheiro com a morte dos dois escravos meus amigos. – Respondeu o coronel Almeida.
-- Ele parece ser forte... Está lhe causando problemas Almeida? – Perguntou o Coronel Aguiar.
-- Não... Eles nunca causaram nenhum problema. A mãe dele vale muito para mim... Porque me pergunta isso? – Respondeu o coronel Almeida com outra pergunta. Seus pensamentos estavam em como a Faizah se encontrava.
-- Se quiser vendê-los eu compro os dois e pago bem. – Disse o coronel Aguiar, alisando o seu bigode branco. Sabia que a escrava tinha valor. Ela era letrada e bonita.
-- Eu também quero comprar os dois. – Adiantou-se o coronel Afonso Ribeiro terminando de apagar o charuto num cinzeiro de madeira. O valor que o Aguiar oferecer... Eu dobro.
-- Esqueçam. Esses dois escravos, são os melhores que eu tenho. Não os vendo por dinheiro nenhum. E mais uma coisa amigos. Aqui não é nenhum leilão.
-- Estranho você falar isso. Ele não estava no pelourinho?
-- Não é porque eles estavam sendo castigados, signifique que os queira vender. A propósito... Na minha propriedade, eu respondo pelas minhas atitudes. E as que eu achar conveniente. Não concordam? – falou em um tom desafiador.
-- Está certo. Não era a minha intenção ofendê-lo, Almeida. – Sinto muito se você achou isso.
-- E nem eu. Desculpe-me se eu não me expressei bem.
-- Você está certo. Desculpe-nos o inconveniente. – falou o coronel Aguiar.
O coronel Almeida abanou as mãos, dando por encerrada a discução.
Um escravo estava parado no umbral da porta à espera de alguma ordem, ou pedido deles.
--Mas voltando ao assunto em questão. Não... Não está a venda. – reafirmou. -- Ele é novo e ainda posso ter muitos lucros com sua venda. – Disse mudando o tom de conversa. Os outros notaram que o coronel estava ficando aborrecido. E por fim tudo voltara, a paz e a amizade.
Uma hora depois de acertarem uns pontos de venda, e troca de escravos...
-- Está bem... Meus amigos, eu vou indo que está ficando tarde. Eu não quero atravessar a ponte no escuro. Nunca se sabe... As chuvas estão pra chegar. – Disse.
-- Eu também vou indo com você. – Atalhou Coronel Afonso.
Meia hora depois de se despedirem, tudo voltara ao normal.
-- Almeida o que aconteceu? Falaram-me que era o Azekel. Eu não acreditei. Ele é uma pessoa dócil e amável.
Perguntou Rosalina irmã do Coronel Almeida, que morava no Rio de Janeiro e que fora passar uns dias na fazenda. Os dois sobrinhos chegaram até ele e o abraçaram. Estavam na sala de biblioteca.
O coronel Almeida olhou para a irmã e respondeu:
-- O desgraçado desobedeceu ao feitor. E isso é inaceitável em se tratando de um escravo. Se eu não tomar providências um dia serão eles que vão mandar aqui.
-- E...  a Faizah?  Ela é uma pessoa admirável.
 A Rosalina adorava conversar com ela.
-- Veio me implorar na frente dos meus amigos. Teve o que merecia. Deveria ser pior. Na próxima vez que isso acontecer, a levo para o leilão a vendo ou troco por outra serviçal.
-- Não acredito que fez isso... Ela é a melhor escrava que você tem Almeida. E você sabe que eu tenho amizade com ela... É a melhor escrava da fazenda... Como você pode?
Rosalina olhava para Almeida em sinal de desaprovação.
-- Porque não? Ela é uma escrava como outra qualquer. – Disse limpando a garganta. -- Só porque tem estudo não quer dizer que seja melhor do que outros. Ela não tem nada de especial... Vou vendê-la, isso sim. – falou resoluto.
-- Não posso crer que eu ouvi isso de você. Era o meu pai... E agora você.
-- Quem manda aqui, sou eu. Gostando ou não. Tá vendo aquela porta? – Apontou. Foi por onde você entrou...
Estava sentado em um sofá e virou-se se ajeitando melhor.
-- Você não deveria fazer isso com ela. É por isso que eu detesto ficar na fazenda. Essas injustiças... me enojam e me  envergonham.
-- Cale a sua boca Rosalina. Se achar que está ruim... Nada está lhe impedindo de voltar para o Rio de Janeiro. Já lhe mostrei a porta.
-- Amanhã farei isso mesmo. Você sabe muito bem que ela ajudava meus filhos. Os seus sobrinhos. Ela conhece mais da vida do que você.
-- Por isso mesmo... A escrava já estava convencendo você e colocando ideias em sua cabeça oca. E já se achando alguém. E antes de um pássaro voar a gente tem que cortar suas asas... Dizia o nosso pai.
-- Você está parecendo papai. Saí daqui porque dele. E farei isso com você. – Quando Rosalina estava chegando à porta, ela virou-se e disse: -- E por isso que é solteirão... Nenhuma mulher lhe quer. Seu estúpido!
-- Sabe... Pensando bem. É melhor você ir embora hoje mesmo, – disse levantando-se.
Ficou olhando pela janela uns escravos que varriam em volta da casa grande.
-- Se não tivesse escurecendo eu iria com certeza. Mas amanhã cedo, quero estar longe desse inferno. Isso aqui fede.
-- Adeus! – gritou coronel Almeida, enquanto ela subia as escadas.
-- Nunca mais eu voltarei aqui! – Rosalina gritou enfurecida.
E dizendo isso, deu meia volta, puxando os filhos para os aposentos na parte superior da casa grande.   
Estava escurecendo, e começava a dar os primeiros pingos de chuva. A água a bater na terra ressequida levantava pontos de poeira, e o cheiro de terra molhada invadia o ar. No tronco, Azekel despertou com a chuva a lhe bater nas costas. Eram como golpes de faca nos vergões, mas ao mesmo tempo aliviava a dor que sentia na alma. Aos poucos foi se recobrando. Um de seus olhos estava fechado devido ao coro do chicote que pegara de raspão na sua testa.  Ficou em pé com dificuldade e amparou com as mãos a água da chuva que caia e colocou na boca aos poucos. Seus lábios estavam rachados por causa da sede e do sol causticante do dia.  Azekel não sentiu quando a água foi colocada em sua boca. A chuva foi aumentando e ele tomou a água que caia como uma cachoeira do céu. Estava com fome. Desde aquela manhã que não comia nada. Gostava de trabalhar no milharal, porque pegava as espigas ainda novas e comia escondido do feitor. Depois enterrava com a enxada. Mas agora estava com muita fome.
-- “Minha mãe... Minha mãe!” -- Disse em voz baixa. Como a senhora está mãe?”
A última coisa que lembrava, era ela sendo açoitada ao seu lado. Depois disso não se lembrava de mais nada. Olhou para a senzala e viu pouca luz de algum candeeiro. Resolveu sentar-se na lama. Agora, a chuva tinha aumentado, e aos poucos ia refrescando o seu corpo.
Um trovão cortou o céu, iluminando todo o pátio. Azekel olhou para a senzala, parecia que tinha visto uma sombra se esgueirando. E vinha em sua direção. Quem seria o louco para fazer isso?
Prestou mais atenção.

Sim. Era um homem e parecia...

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