quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

A FLORESTA DE CEDRO - CAPITULO 2


Capitulo 2

Quando os escravos deixaram a Faizah estendida em cima de uma esteira ensanguentada, várias mulheres vieram em seu socorro.
-- Que aconteceu mulher? O que Faizah fez pra merecer isso? – perguntou uma escrava já idosa.
-- Porque fizeram isso? – Perguntou outra escrava.
-- O Azekel está no tronco... – Falou um negro alto e forte, que trabalhava no casarão fazendo apenas serviços mais pesados. – E ela foi pedir pro sinhô tirá-lo do tronco do pelourinho. E o coronel mandou açoitá-la também. – Apontou Faizah desacordada.
-- O Azekel? Mais ele é obediente. É um bom menino. – Disse Lindiwe, uma negra de feições marcantes, e olhos negros. Amiga de Faizah.
-- Pegue um pano e uma bacia com água Hawa. Vamos tratar esses machucados agora... – Ela disse secando suas próprias lágrimas.
-- Volto logo. – Falou Makena, desaparecendo pela porta da senzala.
-- Se era o Azekel que estava sendo açoitado, por que ela?
-- Você não ouviu o Kamau contando como ela foi maltratada mulher? – Disse Lindiwe para Hawa.
-- Eu não tinha ouvido.
-- Ela foi implorar pro sinhô. – respondeu um garoto chamado de Kenan.
-- E quem fez isso? O feitor?
-- Foi ele mesmo.
-- Tem certeza? – perguntou Hawa.
-- Sim. Eu estava lá.
A Makena voltou com uma bacia de madeira com água e um pano.
-- O que você colocou na água? Makena?
-- Álcool e folhas de ervas.
-- Está bem. Daqui a pouco ela vai se sentir mió.
E começaram a limpar as feridas. Faizah continuava com os olhos fechados. Ela estava lúcida, ouvia tudo o que estavam falando, mas a sua mente estava distante. Depois que a limparam e cobriram as feridas com ervas, Faizah sentou-se na esteira.
-- Que bom que você já está melhor Faizah.
-- Estou decidida... Vou fugir. – Falou com convicção.
-- Você endoideceu? – Disse Lindiwe.
-- As cipoadas devem ter machucado sua cabeça mulher. A não ser que esteja cansada de viver. -- Foi a vez de Hawa dizer com os olhos arregalados. – Vão ti matar muié.
-- Ela endoidou Makena – Falou Lindiwe de novo.
-- Não estou não Lindiwe. Estou cansada de sofrer. Se me matarem, será até melhor. Paro de sofrer. — Só sinto pelo meu filho.
-- E o Azekel? Ele vai ser sacrificado... Se você fizer isso. – Falou a Hawa com os olhos esbugalhados.
-- Ele vai comigo. – falou Faizah.
-- Agora vejo que você endoidou mesmo. Veja como ele está. Ainda está atrelado lá no tronco. Nunca vai conseguir. Tenha paciência muié.
-- Mas já pensei em tudo. Há tempos que estou planejando isso. E acho que esse é o momento certo.
Faizah já tinha decidido fugir, e nenhuma de suas amigas conseguiram demovê-la  dessa ideia.
-- Fale baixo, mulher. Se escutarem isso, ti matam e o Azekel também.
-- Quando você quer fugir? – Perguntou Makena. – com os olhos esbugalhados.
-- Essa noite, de madrugada. – Respondeu Faizah decidida.
-- E pra onde você vai? – perguntou Lindiwe. Olha só o seu estado... Machucada... E...
-- Dizem que tem um quilombo há três dias daqui.
-- Como sabe disso? É mentira. E podem ti pegar.
-- Conversei com uma escrava de um engenho quando fomos ao mercado com a senhorinha. Ela me disse que quem manda lá é os da raça nossa. São livres e podem até plantar.
-- E se for mentira? Você vai morrer. O capitão do mato vai ti encontrar. -- Falou Hawa. – Tire isso da cabeça Faizah. É doidera.
-- Talvez... mais se me encontrarem voltarei morta.
-- Credo em cruz. Tremo só de pensar. – Falou Lindiwe.
-- Cala a boca Lindiwe. Tudo vai dar certo. – e incentivou Makena.
-- Mas você está ainda machucada. Não vai longe desse jeito. Esquece isso amiga...
-- Não, Lindiwe. Decidi. Vocês me ajudam? – Perguntou olhando as três amigas.
Elas olharam uma na cara da outra, e concordaram balançando a cabeça afirmativamente.
-- Precisamos de um homem corajoso pra nos ajudar. – Lembrou Lindiwe.
-- Não vai ser difícil não. Muitos se pudessem, já teriam fugido.
-- Então, está combinado. Eu tenho a chave da despensa. Você vai precisar de comida. – Completou Makena.
-- Ótimo. Então vamos planejar tudo certinho. – Disse Faizah.
-- Vou falar com uma pessoa. – Disse Lindiwe. – Conheço a pessoa certa, com certeza ele vai nos ajudar.
E saiu da senzala.
-- Está bem. Tome cuidado. – Aconselhou Faizah. – Não quero que vocês sofram por minha causa.
-- Amiga, pior do que isso as nossas vidas não ficarão. E pela nossa amizade, tenho o maior prazer em lhe ajudar.
-- Obrigado Makena.
Cada uma das escravas foi cuidar de uma parte do plano, enquanto Faizah ficou deitada, se recuperando.
Mongo estava sentado encostado na senzala, observando o pobre Azekel sentado na lama com os punhos amarrados. “Coitado dele. Tão jovem e vai morrer assim”. Deus o socorra, ele não merece isso não. – Orou em silêncio. – Se eu pudesse ti soltaria garoto! – falou baixinho.
-- Mongo. Você está aí... Eu estava ti procurando. – Falou Lindiwe com voz melosa.
-- Umm! Que bom! O que você quer de mim princesa? Resolveu aceitar namorar comigo?  -- Disse levantando os olhos e esquecendo-se do Azekel por uns instantes.
Mongo perguntou com um sorriso. Fazia dias que ele estava cortejando-a.
-- Não... Por enquanto. Mas quem sabe... Um dia.
-- Está me dando esperança menina.
-- Olhe só o que fizeram com um menino obediente. Azekel não merecia o que fizeram com ele. – Lindiwe apontou para o tronco.
-- Estava pensando nele nesse instante, Lindiwe. Poderia ser eu... E até você.
Lindiwe ficou em silêncio, e depois de um minuto perguntou:
-- Mongo, se você pudesse...  O ajudaria? – Ela perguntou sem olhar para ele.
-- Com toda certeza, princesa. – disse sério.
-- Então você tem uma chance de ajudá-los. – disse baixinho.
-- Como? Ficou doida é? – Falou Mongo ficando em pé e olhando-a nos olhos.
-- Então venha comigo, que eu ti conto como você pode ajudar.
Depois de dez minutos Lindiwe explicou todo o plano que Faizah propusera. Mongo acompanhou cada detalhe com atenção.
-- E então o que você achou?
-- Bom... Pode até dar certo. Mas vou ajudar até onde posso. Combinado? E até onde forem. Eu voltarei pra fazenda depois.
-- Está sim. O importante é ajuda-la.
-- Sabe, Lindiwe. Eu faria tudo pela Faizah. Eu e ela temos algo muito forte entre nós.
-- Por quê? – Ela perguntou curiosa.
-- A Faizah é a única que sobrou de minha aldeia. Tenho-a em grande estima.
-- Isso é bom. Eu também. Ela é a minha única amiga. – Falou Lindiwe.
-- Mas não pode demorar. Temos que aproveitar a noite. Além do mais, vou levar mais um homem comigo.
-- Quem? Não pode ser muita gente, pra não levantar suspeitas...
-- Kodiambo. Ele vai ajudar a carregar o Azekel.
-- Está certo. E tome cuidado. – E lhe deu um beijo de leve na face.
Ela gostava do Mongo, mas não queria casar, e ter filhos, que um dia seria cativos como ela.  Quem sabe um dia.

A senzala continuava em silêncio. Apenas o ronco dos escravos cansados, que estavam espalhados pelos cantos, deitados nas esteiras podia se ouvir. Do lado de fora, duas mulheres se esgueiravam pelas sombras.
-- Está com a chave?
-- Sim, eu já peguei.
Sem dificuldade, elas abriram a porta da cozinha que ficava na parte dos fundos da casa grande. Já dentro da casa, caminharam até a despensa. A Makena segurava três sacos e a Lindiwe outro. Pretendiam encher com o máximo de mantimentos para a fuga dos seus amigos.
Ela forçou a porta da despensa... Estava fechada.
-- Infelizes... Bem hoje. Fica sempre encostada.
-- O que foi? – ela perguntou assustada.
-- Nunca fecham a despensa, e agora está trancada.
Elas falavam baixo pra não chamar a atenção.
-- Makena. – Falou mais alto. Estou escutando passadas.
-- E agora? Se nos pegarem aqui, vão nos matar. Ai, meu Deus!
-- Vai logo. Para de tremer e encosta a porta.
Depois de encostarem a porta, as duas mulheres esconderam-se debaixo da mesa. Os passos estavam cada vez mais perto. Quando os passos entraram na cozinha... Era o coronel Almeida. De sua mão pendia um candeeiro de querosene. A luz fantasmagórica iluminou toda a cozinha. Ele foi até um pote de água e com uma caneca encheu, e levou com ele. Com certeza levaria para os seus aposentos na parte de cima.
O coração da Lindiwe batia descompassado. Ela colocou uma mão na boca da Makena pra não chamar a atenção. E com dois dedos em sua boca fez sinal de silêncio. Para sorte das duas, a luz da lua passava pela vidraça iluminando os moveis com facilidade. E viram quando ele fechou a porta que levava aos aposentos de cima.
-- Ufa! – Suspirou Makena aliviada. – Estamos sossegadas. Agora ele vai se deitar...
-- Mais temos o perigo dos vigias. Eles estão circulando por ai, em volta da casa.
-- Cala a boca e vamos logo cuidar do que viemos fazer aqui. – Falou Makena. – Você parece uma coruja velha.
Ela pegou uma faca e forçou a tramela da dispensa.
-- Abriu.
-- Ótimo. Vamos logo com isso.
Minutos depois elas saíram com os sacos de mantimentos. Tinha muita carne seca e farinha, rapadura e até banha de porco. Seguiam pela sombra do casarão, ao dar uma volta na esquina deu de cara com um vigia.
-- Mais... O que é isso? –
As duas ficaram sem fala quando viram o vigia com a espingarda nas costas.
O vigia ficou estupefato. Sabia que nenhum escravo podia sair da senzala à noite. Era proibido. Quem fosse pego era açoitado no tronco.
-- Nós...
-- Sim. Vocês estão mortas.
Ele tirou a espingarda das costas e fez mira.
Quando mirou a espingarda pra dar um tiro nas duas mulheres, uma pancada na sua cabeça o deixou desacordado. Ele dobrou-se em dois e caiu no chão molhado.
-- Ainda bem que eu vim atrás de vocês. Estavam demorando...
Falou Mongo.
-- Essa foi por pouco home!
-- O coronel entrou na cozinha e tivemos que nos esconder. – Falou Lindiwe.
-- Obrigado Mongo. – Agradeceu Hawa que ficara na esquina para ver se vinha algum vigia.
-- E o resto como está?
-- Tudo certo. mais temos que nos apressar.
-- E ele?
Apontou o vigia desacordado.
-- Deixem comigo. Vão logo pra senzala. Eu termino aqui e vou correndo encontrar vocês. Deixem que eu levo os outros sacos.
Depois que elas saíram, ele pegou o vigia como um fardo e colocou nas costas. Pegou a espingarda e seguiu até o milharal que estava próximo. No meio do milharal e longe da vista, Mongo colocou o vigia no chão. E com um só golpe quebrou o seu pescoço. Lembrou-se das vezes em que no seu país, caçava antílopes. Não teve nenhuma magoa ou medo do que estava fazendo. Muitos escravos já tinham sido mortos pelas mãos dele.
Sabia que haveria represálias, mas não se importava com isso. No caso do Azekel e da Faizah seria apenas mais uma fuga. Não tinha certeza de que eles iriam conseguir fugir. Mas os ajudariam. Nos dez anos que estava ali, só vira duas fugas bem sucedidas. As outras fugas, todos foram recapturadas pelo capitão do mato, e na maioria deles foram mortos para servir de exemplo. Estava torcendo para que essa fuga desse certo. Seria mais difícil. Pois seriam duas pessoas. Mas o plano da Faizah era... Era um bom plano. Há muito tempo que ela estava planejando e tinha tudo pra dar certo.
Depois que espalhou terra em cima pra não chamar a atenção de animais ele saiu do milharal rápido, indo direto para senzala. Entrou por uma abertura nos fundos numa parede. Na frente da senzala sempre ficava um vigia postado ou sentado em um banco. Para evitar que fugissem. Porém na parte dos fundos os vigias quase não rondavam.
-- Estávamos preocupadas com você. – Falou Faizah.
-- Estou bem. Tive que dar um jeito no vigia.
-- Não vou nem perguntar o que você fez com ele.
-- Não deve. Você está bem melhor do que ele.
-- Sim. Estou ótima, Mongo.
 Faizah estava em pé. E nem parecia que tinha tomado às chibatadas na parte da tarde. Enquanto que Mongo estava todo ensopado.
Kodiambo já tinha chegado com o grupo.
Continuava a chover, e agora estava mais forte.
-- Kodiambo, vamos sair de novo. Tive uma ideia quando estava vindo pra cá. Vai ser perigoso. Topa?
-- Sim. Vamos logo então.
-- Aonde vocês vão? – perguntou Lindiwe.
-- Não se preocupem. Voltaremos rápido. Deem-me as sacolas de alimento. Vamos deixar já na estrada.  Está tudo ai dentro? E tomem cuidado pra não acordar ninguém.
-- Está certo. Aí nas sacolas tem muita coisa de que precisam. Tem até um candeeiro com bastante querosene, um facão e uma foice.
-- Está certo Makena.

Meia hora depois os dois homens estavam de volta.
-- E então?
-- Tudo está bem Faizah. E estamos com sorte. Os deuses de nossos ancestrais estão do nosso lado. O vigia não está aí na frente. Olhei em toda direção.
-- Deve ser por causa do temporal. Acham que com esse temporal não tem ninguém com coragem pra fugir.
-- É verdade. – disse Lindiwe.
-- Tudo está a nosso favor. – Falou Faizah. – É por isso que tem que ser hoje mesmo, apesar da dor que estou sentindo. Isso não é nada em se comparando com a nossa liberdade. Se a gente conseguir.
-- Tudo vai dar certo. – Falou Makena.
-- Então vamos logo. – Falou Kodiambo apreensivo.
-- Está certo. Vem cá, minha amiga querida.  Adeus.
 
-- “ukuthi unkulunkulu kukusize futhi akunike eziningi. kahle” 
(Que Deus lhe ampare e lhes dê muita paz. Fiquem bem)

 Todas as amigas de Faizah começaram a chorar, ao se despedir da amiga.
Mongo chegou perto da Lindiwe e a abraçou, no que ela retribuiu com um beijo de despedida.
-- Não fiquem assim. Um dia seremos todas libertadas. E acabará esse sofrimento. Agora fiquem em silêncio e vão se deitar como se não estivesse acontecendo nada.
Mongo se despediu delas também. Vou levá-los até onde eu posso. E farei o possível pra está de volta antes de clarear. Não quero que deem por minha falta.
-- Está com a faca aí? – perguntou Kodiambo.
-- Estou com um facão. – A espingarda estava atravessada em suas costas. E as balas que estavam com o vigia em uma sacola amarrada em sua cintura. – Vá ver se o caminho está livre para gente.
Depois de olhar pela fresta da porta, ele balançou a cabeça afirmativamente. A Faizah continuava a consolar as amigas de tantas datas. Despediram-se e saíram pela abertura na parede nos fundos e seguiram por entre as sombras, beirando a senzala.
Azekel estava agora mais lúcido, mas sentia fortes dores nas costas. Ficou sentado com as mãos para o alto, as câimbras começaram a lhe incomodar. Quando olhou na beirada da casa viu os vultos.

Leabua era um escravo já de meia idade. Poucos tinham amizade com ele, porque mesmo sendo escravo, procurava obter vantagens, fosse com comida ou trabalhos mais leves com os seus senhores. Sabiam que ele não era de confiança. Porque sempre estava no casarão falando dos escravos e dedurando algum plano de fuga.
A sua esteira era perto da porta, e quando Mongo saiu pela abertura no fundo da senzala, ele foi acordado pelas conversas das mulheres. Ficou prestando atenção no que falavam. Mas, uma palavra que ele ouviu o despertou de vez.
FUGA!
Sabia que não seriam elas. As mulheres raramente fugiam. Elas não iam longe, eram facilmente capturadas. Então supôs que fosse o Mongo. Leabua virou-se e viu o Kodiambo com eles.
 “Então serão eles que vão fugir. Mas o que as mulheres têm a ver com isso?” – Pensou.
Ele virou-se na esteira devagar pra não alarmá-los. E não conseguiu ouvir mais nada. Porém tinha certeza de que era uma fuga.
“A minha chance chegou” Vou esperar uns minutos vou dar o alarme pro Sinhô. “Vou direto com ele.”

Apesar da chuva, Azekel conseguiu divisar o vulto de um homem olhando em varias direções e depois seguindo até ele abaixado.
-- Mongo, o que você vai fazer? – Perguntou, reconhecendo quem era quando chegou perto.
-- Fica quieto. Depois ti explico. -- Enquanto falava, cortou as cordas do tronco com o facão. – Temos que sair daqui logo.
-- Isso é loucura... E minha mãe?
-- Está lhe esperado homi. Vamos depressa... Você pode andar?
-- Acho que ainda não. Estou com muita câimbra.
-- Eu ti ajudo. Temos que sair rápido daqui. Se apoie em mim.
Mongo passou um braço pelo seu ombro, e seguiram rente ao canavial em direção à estrada.
-- Pra onde vamos? – Depois no caminho ti falo. Temos que sair logo daqui... Os cães podem está solto.
-- Não estão. Todos estão presos por causa da chuva.
-- Muito bem.
-- Temos que sair depressa. O mais rápido que a gente puder.
Leabua viu quando saíram. Ele voltou pra esteira.
-- Vou esperar um tempo. E depois saio pra casa grande. – falou baixinho.
Ele deitou-se na esteira e recostou a cabeça nos braços. Seus olhos estavam cansados pelo estafante dia de trabalho, minutos depois estava dormindo.


Uma nuvem branca passou pela senzala e se perdeu na noite.

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